Esta Semana: A essência do homem

... MONTAIGNE


Cada homem traz em si a forma inteira da humana condição.

in Essais, séc. XVI

... STO. AGOSTINHO


Em vez de saíres, entra em ti mesmo. É no interior do homem que habita a verdade.

in De Trinitate, séc. V

... PLATÃO


Na alma do homem há uma parte melhor e outra pior. Quando a melhor é superior à pior ele é senhor de si.

in República, séc. IV a.C.

... BERNARDO SOARES


Se acaso uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser oco, como se não fosse mais que a máquina de escrever que trago comigo, portátil de mim mesmo aberto.

in Livro do Desassossego, 1ª edição em 1982

... FRIEDRICH NIETZSCHE


Os nossos instrumentos de escrita têm impacto também sobre os nossos pensamentos.

Epístola, 1882, utilizando a máquina de escrever inventada por Hansen

... FERNANDO PESSOA


Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha – e fará bem em supor, porque é verdade – que estou simplesmente falando consigo.(..)Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –, custa-me a encontrar o travão.

Epístola a Casais Monteiro, 1935.

... ALICE VIEIRA


Só quando estou a escrever é que descubro que história vai acontecer. Antes dizia que tinha que ver com o barulho das teclas, agora não já não posso dizer isso, porque o computador é um bicho mudo... e o barulho faz-me tanta falta. Havia no Diário de Notícias um jornalista, o Humberto Vasconcelos, que, quando entraram os computadores, sofreu muito, como eu, e então fez uma gravação com o barulho das teclas, para o acompanhar quando escrevia no computador.

Entrevista por Catarina Pires, Jornal de Notícias, 2009

... SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDERSEN


Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.
E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro contemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais teres acordado,
Tu como um rio adormecido e doce
Seguindo a voz do vento e a voz do mar
Subindo as escadas que sobem pelo ar.

... EÇA DE QUEIRÓS


Sem coração bastante forte para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o libertava, do amor só experimentou o mel - esse mel que o amor reserva aos que o recolhem, à maneira das abelhas, com ligeireza, mobilidade e cantando.

in "A Cidade e as Serras", 1901

... ÁLVARO DE CAMPOS


Todas as cartas de amor são ridículas.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

in Fernando Pessoa - Obra Poética, 1972

... ÁLVARO DE CAMPOS

POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

in Fernando Pessoa - Obra Poética, 1972

... ANTÓNIO LOBO ANTUNES


As raízes das madeixas loiras nasciam grisalhas no local da risca, e o pó de arroz tentava sem sucesso mascarar as múltiplas rugas fundas ao redor dos olhos e ao longo das bochechas moles, pendentes do queixo em cortinas flácidas de carne.
- Para a semana que vem faço trinta e cinco anos, informou ela com descaro. Se prometeres pôr um smoquingue e levar-me a jantar a um restaurante decente o mais longe possível dos Caracóis da Esperança, convido-te: desde que o Mendes se foi embora tenho um vazio no coração.
E apalpando-me o ombro:
- Sou uma pessoa muito afectuosa, chiça, não sei viver sem amor. Tu não deves ganhar mal, hã, os médicos esfolam, se te arranjasses, te penteasses, comprasses um fatinho na Avenida de Roma talvez ficasses jeitoso embora isso para mim, o dinheiro, o aspecto, não tenha importância nenhuma, são os sentimentos que interessam, a beleza da alma, não é? Um homem que me trate bem, me leve a passear a Sintra ao domingo e chega para eu andar feliz como um canário. Eu cá meu filho pertenço ao género do amor e uma cabana, o meu banho de espuma, a minha depilação das pernas, conta aberta na pastelaria, não exijo mais. Posso dar-te muitos gozos se gostares de mim, me compreenderes, me pagares a renda da casa, eu quero é dedicar-me, ter algyém que me leve ao cinema e ao café, me pague a renda da casa, me trate como deve se, goste do meu basset,me aceite.

in "Memória de Elefante", 1979

... MANUEL ALEGRE


Trova do vento que passa

(...)
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
(...)

balada contida em "Fados de Coimbra", cantada por Adriano Correia de Oliveira

... FERNANDO PESSOA


Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

in Cancioneiro

... MIGUEL TORGA


Conquista

Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

in Cântico do Homem, 1950

... ANTÓNIO LOBO ANTUNES


É próprio do homem não viver livre em liberdade, mas viver livre numa prisão, e já é muito bom.

in entrevista publicada em "Visão", 2006

... FLORBELA ESPANCA


A Liberdade de Coração é uma Mentira

Pois então não vês que é um sonho, uma mentira atroz a liberdade do coração? Não o sentes tu bater, enraivecido e louco, pelo cativeiro? E podes tu, por acaso, soltá-lo? Que irrisão! E se o soltasses, se lhe abrisses de par em par as portas do teu peito, que faria ele em liberdade, pobre leãozito cego?!... Como ele lastimaria o fofo e quente ninho do seu tristíssimo cativeiro! Um coração perdido pela lama do mundo, pelo pó dos atalhos... Que desgraçado coração seria esse! É bem melhor tê-lo como eu digo: «Na paz da tua cela a soluçar...».

in Correspondência, 1916

...FERNANDO PESSOA


Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade

in Mensagem, 1934

...ANTÓNIO RAMOS ROSA


O teu corpo duplica o meu corpo
e vejo por ti o horizonte
O mundo torna-se uma casa de folhagem
em torno da minha fragilidade vegetal
Como sólida corça me sustentas
e temperas os ramos dos meus nervos
com a tua delicada voz de pássaro
Sinto a vibração do teu odor secreto
e o murmúrio dos teus músculos de lua
O teu rosto é uma vogal de água
em que perpassa a brisa de um sorriso
A noite desce mas tu és o círculo da minha
segurança sempre errante
e a haste de clara primavera
que perfuma a minha mente obscura.

in O Teu Rosto, 1994

...MARGUERITE DURAS

Sento-me no banco. Estou extenuada com a beleza do corpo de Hélène Lagonelle estirado contra o meu. Este corpo é sublime, livre debaixo do vestido, ao alcance da mão. Os seios são como nunca vi nenhuns. Nunca os toquei. Ela é impudica, Hélène Lagonelle, não se dá conta disso, passeia-se nua pelos dormitórios. O que há de mais belo, de todas as coisas dadas por Deus, é este corpo de Hélène Lagonelle, incomparável, este equilíbrio entre a estatura e a maneira como o corpo oferece os seios, fora dele, como coisas separadas. Nada é mais extraordinário que esta rotundidade esterior dos seios oferecidos, esta exterioridade estendida para as mãos.

in O Amante, 1984

... ALEXANDRE O'NEILL


PRETEXTOS PARA FUGIR DO REAL

A uma luz perigosa como água
de sonho e assalto
subindo ao teu corpo real
recordo-te
................e és a mesma
ternura quase impossível
de suportar

Por isso fecho os olhos 
(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da
................................................................[provocação
É assim que te faço arder triunfalmente onde e quando quero
Basta-me fechar os olhos)

Por isso fecho os olhos
e convido a noite para a minha cama
convido-a a tornar-se tocante
familiar concreta
como um corpo decifrado de mulher

E sob a forma desejada
a noite deita-se comigo
e é a tua ausência
nua nos meus braços

in Cadernos de Poesia - Fascículo Onze, 1951

... NUNO JÚDICE


POEMA DE AMOR PARA USO TÓPICO

Quero-te, como se fosses
a presa indiferente, a mais obscura
das amantes. Quero o teu rosto
de brancos cansaços, as tuas mãos
que hesitam, cada uma das palavras
que sem querer me deste. Quero
que me lembres e esqueças como eu
te lembro e esqueço: num fundo
a preto e branco, despida como
a neve matinal se despe da noite,
fria, luminosa,
voz incerta de rosa.

in Teoria Geral do Sentimento, 1999