Esta Semana: A essência do homem

... ANTÓNIO LOBO ANTUNES


As raízes das madeixas loiras nasciam grisalhas no local da risca, e o pó de arroz tentava sem sucesso mascarar as múltiplas rugas fundas ao redor dos olhos e ao longo das bochechas moles, pendentes do queixo em cortinas flácidas de carne.
- Para a semana que vem faço trinta e cinco anos, informou ela com descaro. Se prometeres pôr um smoquingue e levar-me a jantar a um restaurante decente o mais longe possível dos Caracóis da Esperança, convido-te: desde que o Mendes se foi embora tenho um vazio no coração.
E apalpando-me o ombro:
- Sou uma pessoa muito afectuosa, chiça, não sei viver sem amor. Tu não deves ganhar mal, hã, os médicos esfolam, se te arranjasses, te penteasses, comprasses um fatinho na Avenida de Roma talvez ficasses jeitoso embora isso para mim, o dinheiro, o aspecto, não tenha importância nenhuma, são os sentimentos que interessam, a beleza da alma, não é? Um homem que me trate bem, me leve a passear a Sintra ao domingo e chega para eu andar feliz como um canário. Eu cá meu filho pertenço ao género do amor e uma cabana, o meu banho de espuma, a minha depilação das pernas, conta aberta na pastelaria, não exijo mais. Posso dar-te muitos gozos se gostares de mim, me compreenderes, me pagares a renda da casa, eu quero é dedicar-me, ter algyém que me leve ao cinema e ao café, me pague a renda da casa, me trate como deve se, goste do meu basset,me aceite.

in "Memória de Elefante", 1979

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